segunda-feira, 2 de maio de 2011

Pai ficaste, não partiste



Pai

Sobrevoo agora o Continente africano, rumo a Luanda. Vou, durante uns dias, viver naquela cidade onde moraste por cinco longos anos, entre 1956 e 1961. Foste, naquela altura, procurar melhor futuro para ti e para a já grande família pela qual  eras responsável. A vida na tua aldeia era pouco lucrativa para sustentar a grande prole – a mulher grávida e quatro filhos já nascidos.

O tempo que viveste em África foi de grande saudade para ti, para a mãe e para os meus irmãos já nascidos.
Não me hei-de esquecer do que a mãe contava: durante a tua ausência havia sempre cartas entre vós, nos barcos que faziam a travessia Lisboa/Luanda e Luanda /Lisboa. Mandaste sempre para a mãe o dinheiro que ganhavas. Era ela quem o geria, cautelosamente, assegurando a vida da família e guardando algum remanescente.

Trabalhaste, com um simpático gerente alemão, o senhor Klein, e um antipático patrão americano, o senhor Mac.

Voltaste à família em Janeiro de 1962, depois de teres visto a mortandade do 4 de Fevereiro de 1961. Passaste o reveillon no barco, onde decorrera grande festa, encabeçada por belgas, fugitivas do Congo.
 Trouxeste presentes para todos.

A mim, deste-me o presente da vida, quando me concebeste com a mãe no início de 1965, já depois de teres suportado mais um ano de separação da família, porque procuraste na capital novo rumo para a tua vida. 

Nas tuas ausências, a mãe enfrentava dificuldades: sempre guardiã das crianças que nasciam do vosso amor cultivava, cozinhava, costurava, lavava, enquanto morria de saudades de ti, durante os teus afastamentos (e tu dela).

Hei-de lembrar-me sempre do respeito que a tua figura me impunha, da dedicação e amor que trocavas com a mãe e do afecto e protecção que ambos nos ofereciam.

Estiveste comigo em todos os momentos da minha vida. Nos bons e nos maus. Deste-me tudo o que de bom um pai pode dar a um filho. Ensinaste-me, com o teu exemplo e por palavras, os teus bons valores: do trabalho, da seriedade, da honestidade, do amor, da solidariedade. 

Passaste-me, talvez geneticamente, a tua capacidade de ver além, a tua mente aberta, indiferente aos preconceitos. Foste um auto-didacta. Apesar da tua baixa instrução escolar, devoravas livros e estiveste sempre atento ao que se ia passando no mundo em que viveste.

Agora descansas. Tu, que sabias que a morte era a paz (nunca acreditaste no fogo do inferno -embora, se houvesse céu, eu esteja certa que lá estarias).

Sinto tristeza por não te ver e ouvir, mas sei que não partiste, estarás sempre connosco. Não estarás só nas nossas memórias e na genética, estarás na marca que nos imprimiste, aos teus já 28 descendentes directos ( o 29º está a caminho...).
Sinto alegria (sei que não te parece mal este sentimento) por teres tido a graça da morte que nos anunciavas desejar - suave e repentina. Vivias, ultimamente, com a preocupação de ficares no estado em que está a mãe – acamado e dependente. Generosamente, nem pensavas o que sofrerias com essa situação, apoquentavaste, sim, por considerares que nós, os sete filhos, que zelamos por vós, ficaríamos numa situação muito difícil com ambos 100% dependentes.

Tenho alegria, também, por saber que sabes (manifestaste-o muitas vezes) que eu e toda a tua família tudo fizemos para te apoiar à medida que foste perdendo as tuas capacidades (embora sempre tenhas feito tudo para te manteres autónomo).

Tiveste a felicidade de partir antes da mãe. Morrerias, mas de dor, se ela fosse primeiro (sabes? Podes ficar tranquilo, achamos que ela não sofreu, pelo menos muito, com a tua morte - ela já não entende.)

O teu corpo foi embora, já sem forças. Prolongaste a tua vida o mais que pudeste para não largares a mãe ao seu amargo destino. Suportaste dois anos exactos, depois da triste doença que a atirou para uma cama, sem poder falar e quase sem compreensão, e o que sofreste com isso… Certificaste-te que nós, os vossos filhos, cuidávamos dela com atenção e desvelo e há poucos dias tinhas-me dito: “Só peço que me dê uma coisa que me leve de uma vez, senão como é que vocês hão-de fazer para tratar dos dois? Assim, eu vou e vós ficais a tomar conta da mãe.”

Descansa em paz querido pai, nós ficamos, contigo no coração, a cuidar da nossa mãe.

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